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"CIDADES, SEDENTARIDADE EM TRÂNSITO E TURISMO" pelo Professor Especialista Joel Cleto

Artigo de Opinião

Professor Especialista Joel Cleto escreve sobre "Cidades, Sedentaridade em Trânsito e Turismo", no seu artigo de opinião publicado no semanário Vida Económica.

"Apesar das inqualificáveis e gigantescas tragédias que o ser humano espoletou, têm sido notáveis os progressos da Humanidade nos últimos duzentos anos: se, em 1820, 95% da população mundial vivia em extrema pobreza, hoje esta percentagem está abaixo dos 10%; em 1800 quase 90% da população mundial era analfabeta e hoje tal valor ronda apenas os 15%; e se, no início do século XIX, quase uma em cada duas crianças (perto de 45%) não chegava aos 5 anos de idade, no início deste nosso século XXI a mortalidade infantil não ultrapassa os 5%. Poderíamos apresentar muitos outros valores elucidativos deste inegável progresso. São avassaladores, por exemplo, os índices da população mundial que hoje vive em regimes democráticos quando em 1816 era apenas 1%. Ora, é neste contexto que devemos compreender os números do Turismo. Entendida, ainda nas primeiras décadas do século XX, como uma prática exclusiva das reduzidas elites sociais do mundo ocidental, a atividade turística disparou de um modo exponencial após o segundo conflito mundial convertendo-a numa indústria dominante, hoje, à escala planetária.
 
Impulsionando este gigantesco crescimento encontram-se três fatores cruciais: as inegáveis conquistas sociais das últimas décadas; o desenvolvimento dos transportes e das vias de comunicação; e uma explosão demográfica que não cessou ainda e que vem abrindo enormes mercados de procura até há poucos anos inimagináveis, de que são exemplo o asiático, nomeadamente o chinês, mas também o sul-americano e mesmo o africano. Com efeito, no pós-guerra, assistiu-se não só a uma generalizada imposição por parte dos Estados do direito a férias para os seus cidadãos, mas também à posterior adoção em muitos deles do direito a subsídio de férias, permitindo o desenvolvimento de práticas de turismo a uma crescente classe média até aí impossibilitada de tais usos. Concomitantemente também se foi assistindo a uma revolução nos transportes, públicos e privados, e a uma crescente qualificação das vias de comunicação, contribuindo de um modo decisivo para a democratização do Turismo. Hoje, fruto dos velozes e cada vez mais baratos meios de transporte (de que os voos low-cost são apenas exemplo), o nosso mundo sedentário está em permanente deslocação. Viaja-se, e não raras vezes para destinos longínquos, para trabalhar, para negociar, para estudar e, obviamente, para fazer Turismo. Vivemos, à escala planetária, numa sociedade de sedentariedade em trânsito. Com todas as consequências positivas, mas também negativas, que daí resultam. E, entre estas, muito se tem falado sobre o exponencial crescimento do turismo nas cidades, de que são exemplo, entre nós, Lisboa e o Porto. Não irei enunciar nestas breves linhas tudo o que se tem escrito e descrito sobre o que o turismo tem "arrastado" de negativo para as cidades. É tema e inventário por todos sobejamente conhecido. Queria apenas refletir sobre algum discurso que, como consequência, se vem ouvindo (e por vezes de onde menos se esperaria), defendendo a necessidade de se "controlar" ou limitar o acesso dos turistas aos centros das cidades. É um tema e são propostas que me parecem perigosas. Desde logo porque restringindo a liberdade de acesso e criando "numerus clausus" à permanência nesses locais acabaremos, de novo, por estar a limitar o seu usufruto às elites sociais com capacidade para a pagarem. No que será um retrocesso nos números da "democratização" e da prática do Turismo e, logo, um retrocesso civilizacional. 

Entendo, por isso, que será mais honesto reconhecermos que esta "explosão turística" e esta nossa sedentariedade em trânsito é um fenómeno novo na História da Humanidade. Nunca nos havíamos confrontado com tais cenários. E se é verdade que urge encontrar soluções, também é certo que há muitos valores, que não os meramente económicos, que estão em causa. Importa por isso, antes de pensarmos em "fechar" as nossas cidades, reconhecer que quando somos nós os turistas, temos dificuldade em perceber porque nos impedem o acesso. Importa reflectir em experiências como a de Amesterdão e numa clara aposta na diversificação das ofertas culturais, patrimoniais e de ócio por todo o tecido urbano, e não apenas nos seus centros históricos, permitindo a sua maior permeabilidade à mobilidade dos turistas. A História pode-nos ensinar algumas coisas. E uma delas é que as soluções não passam por fechar fronteiras ou impedir a livre circulação e fruição das cidades. Até porque antes de sermos cidadãos de uma cidade somos, antes de tudo, cidadãos do mundo."

- in Semanário Vida Económica, 5 de janeiro de 2018