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"O Marketing Cultural, os Cinemas e a Memória Cinéfila" por Professor Doutor Jorge Lopes

Artigo de Opinião

Professor Doutor Jorge Lopes fala-nos sobre "O Marketing Cultural, os Cinemas e a Memória Cinéfila", no seu artigo de opinião publicado no semanário Vida Económica.

"Ao longo das últimas décadas, os hábitos de consumo cinematográfico em Portugal têm sofrido alterações consideráveis, não apenas no que diz respeito ao declínio consolidado no número de espetadores, mas sobretudo no modo como se processa atualmente a experiência que constitui o visionamento de um filme numa sala de cinema. Com a natural exceção das faixas etárias mais jovens, que não possuem elementos suficientes para poderem estabelecer análises comparativas, os cinéfilos que começaram a frequentar as salas de referência do País a partir dos anos 60 ou 70 do séc. XX serão certamente os primeiros a identificar e cartografar essas mesmas diferenças, procurando interpretar a evolução dos comportamentos do espetador de cinema do passado e do presente.

Os investigadores que têm dedicado o seu tempo a propor as suas leituras pessoais acerca do fenómeno, na maioria dos casos apoiadas pela realização de artigos ou teses académicas, apontam diversas causas para esta realidade, que vão desde as mudanças comportamentais verificadas nos tipologias que definem o consumo de produtos e serviços culturais, até à própria lógica operacional que enquadra o visionamento de um filme, que, nos dias de hoje, se caracteriza por uma crescente diversidade de plataformas de difusão que têm diminuído o poder simbólico da sala de cinema tal como era entendida no passado. Em Lisboa e no Porto, que sempre foram os principais polos de exibição cinematográfica no nosso País, os cinemas icónicos do século passado têm a vindo a desaparecer com alarmante regularidade. No caso do Porto, apesar de alguns esforços recentes no sentido de reabilitar e relançar os cinemas que fazem parte da história da cidade, o consumo de filmes está agora praticamente circunscrito a um perímetro territorial representado pelos centros urbanos que se localizam nos arredores da cidade, nomeadamente nos centros comerciais de maior dimensão. A consequência mais notória desta realidade traduz-se na diminuição drástica do número de salas da cidade do Porto, dado que em Portugal se instalou a cultura do centro comercial, que provocou alterações profundas e marcantes nos hábitos de consumo dos portugueses. Estes centros de consumo têm conseguido atrair com sucesso a esmagadora maioria do público, disponibilizando um número elevado de salas que monopoliza de forma avassaladora os indicadores disponíveis sobre os hábitos de consumo de cinema dos portuenses. 

Uma simples visita a um cinema, algo que hoje em dia se integra de forma quase trivial nas atividades de lazer dos portuenses, possuía, no passado, um significado sociocultural bem mais representativo e marcante. Essas experiências englobavam uma série de rituais muito próprios dessas épocas, que passavam pelo respeito por determinados códigos ao nível do vestuário, por exemplo, ou da importância social do intervalo, de duração apreciável, que contemplava uma ida ao café ou a permanência nos espaços comuns dos cinemas, configurando diversos cenários de sociabilização que constituíam uma experiência de tal maneira abrangente que ultrapassava de forma clara o objetivo central da ida ao cinema: ver um determinado filme.

A realidade hoje é bem diferente, e as experiências de consumo acompanharam esta evolução. Com efeito, as similitudes entre as diversas salas integradas nos diversos centros comerciais são evidentes, transformando-as em espaços visualmente monótonos e incaracterísticos, que não possuem as inconfundíveis marcas de identidade que definiam os cinemas de outrora. Depois das salas com nomes de reconhecida notoriedade na cidade, como foram os casos dos célebres Cinemas Trindade e Batalha, que nostalgicamente evocam o período de ouro da exibição cinematográfica do Porto, sucedem-se agora as salas com designações meramente numéricas, que impedem a formação de memórias alusivas à experiência única de ver um filme num espaço especialmente concebido e decorado para servir esse propósito. Por outro lado, o consumo de cinema no contexto originalmente concebido para o efeito, a sala de cinema, tem sido confrontado e desafiado pelo recurso crescente a plataformas alternativas de exibição de filmes, que já ocorre inclusivamente em telemóveis, uma realidade que vai necessariamente alterar e reformatar o perfil do consumidor de cinema do futuro, considerando a influência decisiva dos avanços tecnológicos nesta área específica.

Neste contexto, impõe-se uma reflexão sobre o papel que as estratégias e ações de Marketing Cultural deverão desempenhar no âmbito da gestão dos espaços físicos destinados à exibição cinematográfica, no sentido de recuperar alguns dos elementos que caracterizavam a experiência vivida nas salas, algo que ainda hoje é partilhado na memória coletiva dos cinéfilos. Mesmo que não seja considerado um tema prioritário pelos gestores dessas salas, não seria natural esperar alguma imaginação relativamente às designações desses espaços? Em vez de séries sequenciais de números, porque não identificar cada sala com um nome específico (um ator, uma atriz, um filme), criando assim uma associação entre o espaço visitado e a envolvência física desse mesmo espaço em termos de decoração? Tal como já sucede com a indústria hoteleira, que no passado oferecia um serviço caracterizado pela disponibilização de quartos idênticos e desprovidos de elementos criativos e diferenciadores, e que agora começa a oferecer espaços físicos que se revelam experiências de consumo com diversos níveis de envolvimento emocional (sobretudo ao nível da decoração e dos serviços disponíveis), os cinemas também podem optar por registos mais atrativos e soluções mais cativantes em termos de design.

Nos tempos mais recentes, diversos estudos realizados pela comunidade científica têm comprovado a importância destes aspetos no processo de tomada de decisão de visitar uma sala de cinema, dado que os consumidores têm vindo gradualmente a valorizar a vertente experiencial que retiram do visionamento de um filme. Neste contexto, é necessário reformular os espaços e o conceito inerente à decoração de cada sala e aos serviços que podem ser disponibilizados, incentivando a recuperação dos rituais de partilha e comunhão que podem ser vividos antes e depois da exibição do filme, transformando as áreas comuns dos cinemas, agora transformadas em meros locais de passagem, em territórios de sociabilização, emoção e memória cinéfila."

- in Semanário Vida Económica, 10 de novembro de 2017